29.1.09

Mulheres I - Leila


Há mais ou menos um ano, eu li “O livreiro de Kabul”. O livro é baseado na experiência real de uma jornalista dinamarquesa que viveu durante três meses com a família do livreiro do título do livro. O livro é composto de diversas crônicas sobre a cultura, a política, e a sociedade afegã e os talibans. Esse livro mexeu muito comigo no que diz respeito a condição feminina no Afeganistão e em outros paises do oriente com uma cultura tradicionalista onde a mulher está totalmente subordinada ao homem, seja ele seu pai, seu irmão, seu filho ou seu marido, uma subordinação que extrapola os limites da vida privada e chega até a vida pública através do direito e da legalidade. Para estudar ou trabalhar, por exemplo, a mulher tem de ter a permissão do pai ou do marido. Fiquei muito sensibilizada quando li o livro, porque doía pensar em pessoas levando uma vida tão sem perspectiva – sim, meu olhar é ocidental, mas se todos lá levassem numa boa, não haveria mulheres ateando fogo em si mesmas por não suportar mais viver sob a opressão e violência de toda uma sociedade.

Lembrei desse livro essa semana por conta de uma situação um pouco parecida. Minha mãe é professora de um grupo de alfabetização de jovens e adultos no nosso bairro. Uma das alunas deixou de freqüentar o grupo e minha mãe foi até a casa dela saber se tinha acontecido alguma coisa. Quem a atendeu foi o marido da senhora. Ele nem a deixou conversar com a aluna, simplesmente disse que aquilo não era pra a esposa dele, que ela não precisava aprender a ler, que aprender a ler só lhe traria problemas. Essa foi uma conversar levada entre as grades do portão, pois o sujeito nem se dignou a abri-lo e conversar de maneira decente e educada.

Quando minha mãe contou esse episódio eu lembrei na hora de “O livreiro de Kabul”, mais especificamente da história de Leila, a irmã mais nova do livreiro. Leila cresceu durante o regime Talibã, ou seja, durante o período que os radicais islâmicos dominavam a política e a sociedade. A vida durante o período em que o Talibã controlava a política me pareceu muito com a idéia equivocada que se tinha, até pouco tempo, sobre a Idade Média, então chamada Idade das Trevas. Se existiu uma “idade das trevas” sem dúvida ela aconteceu no Afeganistão entre o final do século XX e o início do século XIX, pasmem! O domínio do Talibã, significou a destruição da cultura afegã, séculos e séculos de cultural, caídos por terra, a negação total da influência ocidental, o radicalismo religioso que negava a própria imagem do ser humano (representações da figura humana em livros, revistas e até em frascos de cosméticos eram riscadas com caneta ou tinta).

O que acontece com uma menina que cresceu sob uma burca, sob a sombra do Talibã, sob a sombra do corrupção eminente em tudo e em todos? Leila, tentou estudar, mas não teve forças para continuar porque julgava indecente assistir aulas de inglês na presença de outros rapazes. Leila tentou arranjar um emprego, mas não pôde, pois não tinha a autorização do irmão mais velho, e sua mãe não se esforçou muito para pedí-la, até porque ele não a daria. Leila tentou namorar um amigo de seu irmão moço, universitário que demonstrou interesse por ela, mas o irmão conseguiu azedar as coisas entre ela e o pretendente, afastando-o do convívio com sua família e se distanciando do amigo. Mesmo sabendo do interesse da filha por tal rapaz a mãe propôs a ela o casamento com o filho de um conhecido da família, que não tinha emprego, que não tinha perspectiva alguma. E Leila acabou aceitando pois não tinha perspectiva alguma também, porque seu destino nunca esteve em suas mãos mas sim nas mãos dos outros: nas mãos do pai, que tinha uma segunda esposa mais nova que ela; do irmão mais novo, que sempre a humilhava e espancava; e até mesmo nas mãos do tal pretendente, que ela julgava ser sua libertação daquela vida sem sentido, o passaporte para uma vida decente.

Tive pena de Leila, pois ela não tinha referências, ela não tinha ninguém em quem se espelhar, ela não tinha apoio nem das outras mulheres de sua família, para as quais o destino de uma mulher é casar e ter muitos filhos. Leila não sabe que eu conheço parte de sua vida, que chorei lendo sua historia, e que de tempos em tempos eu a relembro, nem mesmo sabe que eu estou aqui escrevendo sobre ela, agora. Leila talvez esteja no seu quarto filho, ou talvez tenha se ateado fogo – vai saber.

* * * * *

O que Leila e as várias mulheres brasileiras têm em comum? Aparentemente nada, mas se olharmos com mais atenção, para além da nossa minúscula janela, perceberemos que ainda existem várias e várias mulheres que colocam seu destino nas mãos dos outros, que continuam sendo espancadas e violentadas por seus parceiros, ou pala própria família sem tomar uma atitude. A diferença entre elas é que Leila, legalmente estava subordinada a figura masculina, aqui no Brasil há muitos e muitos anos a mulher legalmente é dona de sua vida. Então, por que se subordinam? Por que não reagir? Existem milhares de motivos que essas mulheres, e até mesmo minha mãe, dariam para essas minhas perguntas, mas ainda que esses motivos sejam legítimos há que se reagir, tomar as rédeas da própria vida e dar sentido a ela, porque para viver sem sentido é realmente preferível se atear fogo, e aquelas mulheres que tomam essa atitude, longe de estarem desistindo, longe de serem vítimas, estão, na verdade, pela primeira e última vez tomando as rédeas de seu destino, mesmo que este seja trágico.


* A opressão e controle sob os quais as mulheres vivem no Afeganistão não foi criado pelos Talibãs, pelo contrário, é uma característica cultural daquela sociedade, uma sociedade tradicionalista e patriarcal, onde a mulher ainda é moeda de troca. Mas antes de 1996, quando os talibãs tomaram o poder depois de anos recebendo apoio bélico dos EUA, interessados em manter uma guerrilha e minar a influência da União Soviética na região (que invadiu o Afeganistão em 1979), as mulheres já tinham o direito de trabalhar e estudar (em escolas para meninas é claro). O fundamentalismo religioso dos talibans, apenas exacerbou um traço cultural daquela sociedade e jogou uma pá de cal nos progressos em relação aos direitos da mulher que vinham sendo obtidos com muita luta e algumas mortes.




Imagem: Duas mulheres correndo - Pablo Picasso; postei uma obra de Picasso porque para mim na pintura ele está para Chico Buarque na literatura, no que diz respeito a retratar a alma feminina. Um faz isso na poesia, o outro faz isso nas artes plasticas.

4 comentários:

Zerfas disse...

Liberdade, liberdade , abra as asas sobre nós!!
Desde da proclamção da republica, as mulheres neste país tem ganhado lugar de destaque.
O fato é que a liberdade que exigimos das aredeas sociais ainda não alcançaram todos os cidadãos. Muitos ainda almejam serem donos de algo ou de alguma coisa que realmente não são. Esquecem que a unica coisa de que são donos são de si mesmos.
LIBERDADE
Andar com os proprios pés, sentir o tempo na pele, usar as proprias mãos para arar a terra e ter o que comer. Perceber que nada que lhe cerca é realmente seu é perceber que a vida tem inicio meio e fim.

Mauro Sérgio Farias disse...

O pior é que vc não precisa ir até o Afeganistão. Outro dia mesmo o presidente do Fluminense, Roberto Horcades, se disse impressionado pelo fato de as mulheres, "com seus dois neurônios", conseguissem jogar futebol.

Sem comentários, né?

Carla S.M. disse...

Estou agradecida pelo seu texto tão inteligente e sensível.

Romanzeira disse...

Carla, quando li o livro fiquei atônita, era muita informação e muitos sentimentos que ele despertou em mim, mas como se diz na história, é preciso tomar distancia do objeto, deixar passar o alvoroço da novidade e as primeira impressões, para olha-lo com mais apuro. Foi inevitável não pensar sobre a história de Leila, quando minha mãe relatou o caso de sua aluna.

Ester, a liberdade é preciosíssima e é uma pena que algumas pessoas (talvez a maior parte) não saibam aproveitá-la.

Mauro Sérgio, realmente não precisa ir muito longe, mas pior que essas pérolas são outras situações como por exemplo ter de apelar para a figura do marido para te atenderem em determandas situações, mesmo não tendo marido. Uma amiga minha passou por isso quando teve que chamar a assistencia para concertar o pc que veio com defeito. Ela não era casada, o advogado da irmã dela teve de ligar para a firma e se apresentar como seu marido. O problema foi resolvido na hora. É mole?!