Ele acompanhou lentamente o papel cair no chão. Lembrou de vários filmes que já tinha assistido, com cenas em que coisas caiam bem devagar e pela primeira vez na vida viu uma coisa cair bem devagar na sua frente. Foi um momento impar, único, em que a vida lhe passou pelos olhos como os filmes que ele já tinha visto, só que esse filme era seu. Ele viu os dez anos que passou ali, naquele trecho, lembrou do primeiro dia, o sol quente, e como todos os outros foram sempre iguais, sempre iguais vairando apenas se eram dias quentes ou frio, dias de sol ou de chuva. Os transeuntes, as meninas correndo no calçadão, turistas se atirando ao mar, embevecidos com um mar que nesse instante para ele não era nada de mais. O curioso é que nos dez anos que revia, aquele mar foi tudo para ele, era um sonho, seu sonho de Domingo, sair de sua casa na baixada fluminense e se atirar naquele mar que bainhava ricos, e pobres, gringos e conterrâneos, celebridades e a maioria desconhecida. Ele olhou aquele mar e este não lhe pareceu mais que uma grande poça cheia de gente deslumbrada! Onde esteve por tanto tempo? Por onde tinha andado? Será que tinha existido. Sentiu uma sensação estranha, como de alguém que estava vendado e de uma hora para outra lhe descobrem os olhos. A luz vem entrado de uma vez, acendendo tudo, invadindo os mais tênues espaços de escuridão, descobrindo tudo e ao mesmo tempo queimando, fazendo chorar. Ele agora se via, via o seu entorno e gostava de se ver, sentia um alivio grande, o alivio de uma pergunta que nem ele sabia que existia dentro de si, que so tinha percebido naquele instante, mas também sentia a frustração da realidade, da respos. A verdade que transbordava agora em cada canto escuro que se iluminou. Sua cabeça processava tudo que via, filtrava tudo que via em fração de segundos. E em segundos ele entendia seu lugar em tudo aquilo.
O papel parou no chão. Era uma pequena embalagem de bala, uma moça jogou após ele passar a vassoura. Ele viu o papel caindo, caindo. Não soube dizer porque a surpresa, pois já tinha visto isso acontecer outras vezes, mas naquele dia, ele viu de fato e foi então que as luzes. Viu que ninguém o via, e talvez nem ele próprio se via. Parou, olhou o entorno, olhou a praia, os prédios como gigantes lhe fazendo sombra naquele horário. O colega o fitou meio perplexo, sem entender o que estava acontecendo. Várias pessoas esbarraram nele na rua, algumas reclamaram outras nem se deram conta e prosseguiram. Ele tentou olhar no rosto de cada um que lhe esbarrou, mas não viu nada, não via nada, eles simplesmente o ignoravam ou desviavam o olhar. O colega se esforçava em varrer e juntar as folhas – teve vontade de rir, não sabia se de raiva ou achando graça do coitado, no dia seguinte fariam o mesmo trabalho, sob o mesmo sol e sob a mesma sombra dos gigantes. Seriam esbarrados pelos transeuntes a quem diriam um "desculpe" baixo, sem levantar os olhos e prosseguiriam a varreção, recolhendo papéis de balas de onde já haviam varrido. Era um trabalho inútil, repetitivo, idiota mesmo. Talvez ele fosse um idiota então, talvez por toda a sua vida fora tirado por idiota e se fez de idiota por não conhecer outro caminho, por não se conhecer. Deu uma última olhada ao seu redor, pegou a vassoura e recomeçou o trabalho inútil. O colega pareceu satisfeito por vê-lo retomando o serviço.
Segui para a casa. Ônibus, trem. Por todo o caminho percebia tudo, sentia tudo com clareza. Podia entender cada conversa mantida no vagão onde se amontoava com tantas outras pessoas. Conversas triviais do dia a dia. O vagão ia abafado, o cheiro de gente amontoada, do calor dos corpos, dos desodorantes borrifados em excesso para espantar o suor e o mal cheiro inevitável pelo calor. Tudo aquilo estava bem vivo para ele. Era como o primeiro dia – ou talvez o ultimo pensou.
Chegou em casa e encontrou os netos dormindo, os filhos vendo tv na sala, e a mulher na cozinha fazendo palavras cruzadas. Pela primeira vez a admirou por não compartilhar do entretenimento idiota que os filhos consumiam vidrados na escuridão da sala, etretenimento ao qual ele várias vezes tinha consumido e achava bobagem a mulher sempre reclamar tanto. Talvez ela ja tivesse tido se momento de iluminação antes dele - pensou. Sentou a mesa, comeu com vigor o prato que ela lhe serviu. Pela primeira vez percebia sua comida, o quanto era gostosa o quanto ela caprichava e elogiou. A mulher achou estranho, o marido não era de elogios. Deitaram-se e ele a procurou. Com vigor, mas em perder a delicadeza a possuiu, como nunca tinha feito. Conversaram sobre a vida, e sobre coisas que a muito não conversavam ou que nunca tinham conversado. A mulher achou estranho mas ficou feliz com aqueles momentos que estava passando, coisas que nunca tinha passado, e nem deu importância ao fato do marido estar diferente. Dormiram. E aquele escuro do quarto, o som da boca da mulher estalando um beijo na sua antes de dormir, foram as ultimas coisas que viu e ouviu. Fechou os olhos e rezou. Rezou de verdade e agradeceu a Deus, que ele naquele instante se perguntava se existia ou não, por essa clareza súbita, por perceber coisas que ele nunca tinha percebido. Ele não sabia como seria sua vida no dia seguinte, ele nem sabia se no dia seguinte estaria como naquele instante, mas agradeceu por essa oportunidade, sem deixar de perguntar porque isso só lhe acontecera agora e por quê isso lhe acontecera . E esses foram seus últimos pensamentos.
13 comentários:
que bonito, e que triste.
é uma pena nos darmos conta das coisas tarde demais. alguém pode dizer que nunca é tarde, mas eu acho que é sim. não quero passar a ver a beleza das pequenas coisas da vida com 70 anos depois de anos de trabalho e repetições e uma vida trocada pela sobrevivência.
nem passar a ter lucidez pra entender o que eu não entendo quando isso já não mais fizer diferença.
mas, talvez, tudo isso seja impossível de atingir. vai saber...
Vivi, tu tá escrevendo cada vez melhor, minha nêga, só que tá confiando demais nesse teclado aí. ele tá deixando passar uma ou outra letrinha comida, dá uma revisada e uma bifa nele ;o)
bitocas!!!
Adorei. As vezes me lembrou um pouco do cronista Gallo, que escreveu "O Inédito de Kafka", outras vezes me lembrou um poudo de Herman Hesse e seu sensacional "Sidarta". O final equilibrou os dois de uma forma interessante. Nem o protagonista se revolta contra a rotina sucumbindo aos maus desejos, nem ganha sua estátua imortal tornando-se motivo de peregrinação aos menos iluminados. Ele encontra sua própria salvação, isso lhe basta e é o seu fim. Talvez devesse ser o fim de todos nós...
Mas eu concordo com a Sâmia, iluminação já! Quem morre de véspera é o peru. Pra mim não existe futuro!
faço coro, Beijos.
Opa, li o livro que o cartunista Robert Crumb desenhou sobre alguns textos e vida de Kafka. Muito Bom...
abraço
O texto é lindo e induz à reflexão. E senti e ouvi várias coisas e músicas ao percorrê-lo. Estava com saudade de seus textos, q bom q voltou. Beijos.
http://www.orkut.com/Home.aspx?xid=15865625353536135420
Te espero lá, minha linda! E na Mágoa de Caboclo também! Se joga!
Lindo texto, fiquei encantado.
Muito bom, Viviane! Concordo com a Sâmia em tudo que ela disse, inclusive na parte do teclado. Dê uma boa lida no texto antes de postá-lo, hehehhehe!!
De resto, o texto está mesmo bem bonito e triste, fazendo-nos pensar sobre dar valor nas coisas tarde demais. Não quero chegar a esse ponto (ou será q já cheguei?)
Bjos e boa semana!
Ah, Vivi, e me esqueci de te dizer uma coisa. Eu nem dei a devida atenção àquela discussão lá no se me deixa..., mas eu fecho contigo, viu? Esse papo de que história é somente narrativa já cansou a minha beleza... O que nós fazemos é ciência. E tenho dito! Heheheh..
Beijos!!!
Gente eu quero agradecer a todos vocês pelos comentários.O motivo do texto estar cheio de erros é que eu ando muito sem tempo, e quando me veio a idéia eu escrevi e postei. Quis postar logo, antes que meu ânimo esfriasse. Mas vou corrigir, assim que tiver um tempinho.
Bom, quanto a idéia do texto, ela surgiu quando vi a pagina inicial da revista Muro, uma edição eletronica que eu gosto muito de ler e vou linkar aqui. Fiquei pensando que tem pessoas que trabalham como serventes, garis, garçons, e trocadores e tantas outras profissões que a gente parece não ver. Como se essas pessoas não tivessem voz, não tivesse história, não fossem ninguém. Soma-se a isso a própria distancia que o cotidiano e o ritmo da vida, cada vez mais rápido, nos impõe. Não ficou como eu queria, relendo, eu acho que faltou muita coisa, mas achei melhor postar pra ideia não fugir. hehe
Sâmia, nêga, que bom que tu concordas comigo! Ah, as vezes eu me sinto um ovo no meio das maçãs acadêmicas. Fico fula com essa historia de que historia é literatura ou é ficção...Casseta, a gente escreve sobre coisas que aconteceram. É como o Karr disse, "uma montanha é sempe uma montanha. Você pode olhá-la de vários ângulos, mas sempre será uma montanha". E pesquisamos utilizando o metodo científico. Então os fisicos teoricos na verdade escrevem ficção científica, não é?! Porque os sujeitos especulam sobre coisas que não estão vendo, e pior que a gente, pesquisam utilizando dados baseados em probabilidades. E aí, o que eles fazem?! Ah...isso ja cansou também minha beleza! Sobre ser tarde para agir, sim, menina, eu acho que muitas pessoas acordam tarde de mais, as vezes eu acho que eu mesma ja perdi muito da vida, pensando nela e com medo dela, ma fazer o que. Uma coisa eu sei, quando a gente tem um encontro consigo mesmo alguma coisa fica na gente. Alguma coisa a gente aprende.
Emerson, eu gosto muito mesmo do Kafka e de desenho também. Vou cassar esse livro nas grandes livrarias pois deve ser a maior viagem ilustrar textos dele. Valeu!
Carola, lembra que disse que a foto da Muro me deu uma idéia? Está aí. Que bom que gostou.
Diego, como disse la no teu blog, eu nunca li Gallo e comecei a ler o Hesse e detestei. Mas eles são bons e me agrada ser comparada a caras bons. Valeu!
Camilla, Ciro, Eduardo, Worklover, valeu mesmo a força!
beijo a todos!
Um grande beijo a todos.
Valeu a visita e os comentários!
Abração
Vivi, acabei de terminar o livro da Saavedra. Ele é gostoso de ler, me cativou e me fez rir um bocado. Mas esperei por um final que me surpreendesse, o que não ocorreu.
No cômputo geral não está lá essas coisas não, mas te encorajo a se aventurar a lê-lo; há trechos brilhantes que valem por todo o livro.
Beijocas
Que posso dizer que ainda não foi dito???
Esse texto tá do caral, muito bom mesmo. (Viu como não dá para confiar no teclado?) Concordo com Sâmia, a produtora: vc está escrevendo cada vez melhor.
Beijos.
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