25.12.08

A Corrente

“Sim, senhora!” “Tenha um feliz natal, senhora!” “Volte sempre, senhora!” As frases saiam automaticamente, como uma gravação. Ela não percebia mais o significado das palavras, apenas respondia de forma gentil, com um sorriso discreto e superficial – mas não impessoal, pois uma das técnicas que ensinaram no treinamento era exatamente manter o verniz da atenção individual, por isso ela olhava nos olhos das senhoras e senhores que atendia. Não procurava nada naqueles olhos, também não tinha nada nos seus. O brilho era falso, o tom de proximidade era falso, o sorriso era falso e todos sabiam disso, tanto ela quanto os clientes. Mas o atendimento tinha de ser feito d’aquela maneira e ela, às vezes, se perguntava o porquê daquilo? Entretanto, seus questionamentos não duravam mais que alguns segundos, logo se esvaiam entre um “Obrigada, senhora” ou “Pois, não, senhor”.

Naquela quarta-feira ela só queria ir para casa. Conseguiu trocar de horário com uma colega da tarde. Sairia como quase todas as pessoas normais, às 17:00 horas. Na hora do lanche, surgiu o burburinho de que alguém tinha sido demitido e alguém teria de cobrir o horário do alguém demitido.

“Caramba, mas é Natal!” - exclamou.

“Não tô nem aí se é natal ou não, quero ir pra casa! Nem adianta vir com a conversar que paga extra. Tenho muitos extras pra receber, o de hoje eu não quero. Estou louco pra sair daqui e tomar todas”. Respondeu um colega.

Ficou preocupada. Quem faria o extra? Não podia e não queria ficar num horário que não era o dela, mas também não era bom se insurgir. Voltou ao seu caixa. As horas se arrastavam, as pernas ardiam, a coluna doía e já estava cansada da falsa educação. Faltando cinco minutos para às 17, viu o supervisor. “Ai, meu Deus. Tomara que passe direto por mim”. Parou nela bem no momento em que atendia uma cliente, e ela não pode nem responder nada. Só ouvi um murmúrio do qual apenas entendeu o essencial “...extra até as 10:00 da noite”, ao mesmo tempo que respondia mais um “boa noite, senhora”. Sentiu os olhos queimarem, a impotência de resistir, de dizer “não”. Ela atendia uma mulher jovem, talvez da sua idade, com uma menina pela mão, talvez da idade de sua menina. O carrinho ia cheio de compras, brinquedos, roupas, louças... Ela entraria em seu carro e em alguns minutos estaria em sua casa. Comeria a ceia feita pela empregada, enquanto a caixa se amassaria num ônibus entre outros caixas, vendedores, empregadas domésticas, donas de casa pobres e uma infinidade de pessoas, por mais de uma hora. E sabe lá quando chegaria em casa?

“É a vida”, “o sol não nasceu pra todos”, ouvia sua mãe, que ouviu de sua avó, a qual ouviu de sua bisavó. O sol nasceu para todos, mas o seu brilho varia de acordo com o cheque do cliente.

A moça se foi e muitas e muitas outras chegaram e se foram, e chegaram crianças, e senhores e senhoras idosas, adolescentes, jovens, engravatados, esportistas, militares, surfistas. “Sim, senhor”, “sim, senhora”, “sim, senhor”, “sim, senhora”. Ela já não olhava mais a hora, já não pensava mais na saída, os minutos eram um continuo, a noite era uma torrente que não se sabia quando cessaria. Sentiu-se qual um afogado, levado pela maré, vencido pelas ondas que lhe batiam.

Às 21 horas, todos saíram, e o shopping estava silencioso. O grupo de empregados foi se dissipando pelo corredor principal. Antes de chegarem à grande porta de saída, passaram pelas escadas rolantes onde a decoração de natal alcançava seu auge, com enormes pinheiros cobertos de neve, renas, trenó, gnomos do Papai Noel e um trenzinho cercado de neve e presentes. Ironicamente, o suposto dono da festa não estava presente. O presépio fora substituído pelo “bom velhinho”. Ficou parada por alguns instantes olhando, meio perdida... Neve no calor do Rio de Janeiro... Nada daquilo fazia o menor sentido, nada! E tudo era tão ridículo... O tumulto das compras, os sorrisos mecânicos, trenós e neve falsa, um enorme cenário sem qualquer sentido. Ela sabia que no próximo ano seria tudo igual: primeiro o dia das mães, depois dos namorados, depois dos pais e das crianças e novamente o natal, a coroação da corrente de consumo. Aqueles pensamentos surgiam em flashes e ela nem se dava conta direito.

Subitamente teve vontade de atirar o embrulho enorme e cor de rosa, que trazia na sacola – a casa da boneca mais badalada da indústria de brinquedos – no meio dos presentes falsos do trenó. Mas não teve coragem. O que diria à filha? O que deveria ter dito durante todo o ano a respeito de presentes, brinquedos, datas, solidariedade? O que, na verdade, ela ensinava a sua filha? Era tarde para remediar o mal feito. Entendia agora que ela também, de alguma forma, contribuía para a corrente. Mas os pensamentos surgiam e desapareciam como flashes.

Encaminhou-se para a saída onde o vigia a aguardava, impaciente por fechar o shopping. Agora, só pensava em pegar o ônibus. Dali a dois dias, tudo começaria novamente.

 

Um comentário:

Zerfas disse...

Oi Moça!
Vivemos uma corrente de consumo sem pensar.
Sem pensar quanto custa, quanto vale, o que realmente é importante.
Os valores de ontem não são mais o de hj e logo tudo se esvai como areia entre os dedos.
Não adianta orar sem sentir amor.
Não adianta comemorar sem saber o porque, neste momento as pessoas estão invadindo o shopping pra vender e trocar os presentes mal comprados para um natal de consumo.
Precisamos repensar...