“Sim, senhora!” “Tenha um feliz natal,
senhora!” “Volte sempre, senhora!” As frases saiam automaticamente, como uma
gravação. Ela não percebia mais o significado das palavras, apenas respondia de
forma gentil, com um sorriso discreto e superficial – mas não impessoal, pois
uma das técnicas que ensinaram no treinamento era exatamente manter o verniz da
atenção individual, por isso ela olhava nos olhos das senhoras e senhores que
atendia. Não procurava nada naqueles olhos, também não tinha nada nos seus. O
brilho era falso, o tom de proximidade era falso, o sorriso era falso e todos
sabiam disso, tanto ela quanto os clientes. Mas o atendimento tinha de ser
feito d’aquela maneira e ela, às vezes, se perguntava o porquê daquilo?
Entretanto, seus questionamentos não duravam mais que alguns segundos, logo se
esvaiam entre um “Obrigada, senhora” ou “Pois, não, senhor”.
Naquela quarta-feira ela só queria ir para
casa. Conseguiu trocar de horário com uma colega da tarde. Sairia como quase
todas as pessoas normais, às 17:00 horas. Na hora do lanche, surgiu o
burburinho de que alguém tinha sido demitido e alguém teria de cobrir o horário
do alguém demitido.
“Caramba, mas é Natal!” - exclamou.
“Não tô nem aí se é natal ou não, quero ir pra casa! Nem adianta vir com
a conversar que paga extra. Tenho muitos extras pra receber, o de hoje eu não
quero. Estou louco pra sair daqui e tomar todas”. Respondeu um colega.
Ficou preocupada. Quem faria o extra?
Não podia e não queria ficar num horário que não era o dela, mas também não era
bom se insurgir. Voltou ao seu caixa. As horas se arrastavam, as pernas ardiam,
a coluna doía e já estava cansada da falsa educação. Faltando cinco minutos
para às 17, viu o supervisor. “Ai, meu Deus. Tomara que passe direto por mim”.
Parou nela bem no momento em que atendia uma cliente, e ela não pode nem
responder nada. Só ouvi um murmúrio do qual apenas entendeu o essencial
“...extra até as 10:00 da noite”, ao mesmo tempo que respondia mais um “boa
noite, senhora”. Sentiu os olhos queimarem, a impotência de resistir, de dizer “não”.
Ela atendia uma mulher jovem, talvez da sua idade, com uma menina pela mão,
talvez da idade de sua menina. O carrinho ia cheio de compras, brinquedos,
roupas, louças... Ela entraria em seu carro e em alguns minutos estaria em sua
casa. Comeria a ceia feita pela empregada, enquanto a caixa se amassaria num
ônibus entre outros caixas, vendedores, empregadas domésticas, donas de casa
pobres e uma infinidade de pessoas, por mais de uma hora. E sabe lá quando
chegaria em casa?
“É a vida”, “o sol não nasceu pra
todos”, ouvia sua mãe, que ouviu de sua avó, a qual ouviu de sua bisavó. O sol
nasceu para todos, mas o seu brilho varia de acordo com o cheque do cliente.
A moça se foi e muitas e muitas outras
chegaram e se foram, e chegaram crianças, e senhores e senhoras idosas,
adolescentes, jovens, engravatados, esportistas, militares, surfistas. “Sim,
senhor”, “sim, senhora”, “sim, senhor”, “sim, senhora”. Ela já não olhava mais
a hora, já não pensava mais na saída, os minutos eram um continuo, a noite era
uma torrente que não se sabia quando cessaria. Sentiu-se qual um afogado,
levado pela maré, vencido pelas ondas que lhe batiam.
Às 21 horas, todos saíram, e o shopping estava silencioso. O grupo de
empregados foi se dissipando pelo corredor principal. Antes de chegarem à
grande porta de saída, passaram pelas escadas rolantes onde a decoração de
natal alcançava seu auge, com enormes pinheiros cobertos de neve, renas, trenó,
gnomos do Papai Noel e um trenzinho cercado de neve e presentes. Ironicamente,
o suposto dono da festa não estava presente. O presépio fora substituído pelo
“bom velhinho”. Ficou parada por alguns instantes olhando, meio perdida... Neve
no calor do Rio de Janeiro... Nada daquilo fazia o menor sentido, nada! E tudo
era tão ridículo... O tumulto das compras, os sorrisos mecânicos, trenós e neve
falsa, um enorme cenário sem qualquer sentido. Ela sabia que no próximo ano
seria tudo igual: primeiro o dia das mães, depois dos namorados, depois dos
pais e das crianças e novamente o natal, a coroação da corrente de consumo.
Aqueles pensamentos surgiam em flashes e ela nem se dava conta direito.
Subitamente teve vontade de atirar o
embrulho enorme e cor de rosa, que trazia na sacola – a casa da boneca mais
badalada da indústria de brinquedos – no meio dos presentes falsos do trenó.
Mas não teve coragem. O que diria à filha? O que deveria ter dito durante todo
o ano a respeito de presentes, brinquedos, datas, solidariedade? O que, na
verdade, ela ensinava a sua filha? Era tarde para remediar o mal feito.
Entendia agora que ela também, de alguma forma, contribuía para a corrente. Mas
os pensamentos surgiam e desapareciam como flashes.
Encaminhou-se para a saída onde o vigia
a aguardava, impaciente por fechar o shopping. Agora, só pensava em pegar o
ônibus. Dali a dois dias, tudo começaria novamente.
Um comentário:
Oi Moça!
Vivemos uma corrente de consumo sem pensar.
Sem pensar quanto custa, quanto vale, o que realmente é importante.
Os valores de ontem não são mais o de hj e logo tudo se esvai como areia entre os dedos.
Não adianta orar sem sentir amor.
Não adianta comemorar sem saber o porque, neste momento as pessoas estão invadindo o shopping pra vender e trocar os presentes mal comprados para um natal de consumo.
Precisamos repensar...
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