Almoços de família são ocasiões lindas e sentimentais somente em filmes americanos, ou em seriados tipo Brothers and Sisters. De maneira geral, os almoços de família são sempre uma boa oportunidade para se lavar a roupa suja, para jogar farpas, para fofocar da vida dos outros ou expor os infindáveis planos futuros para os filhos ou os seus próprios. Naquela tarde de domingo, não poderia ser diferente. Helena engoliu em seco e entrou em casa, já estavam todos esperando por ela. Ela se sentia um peixe fora d’agua. Ah, água doce, ela ansiava sim era por estar de molho em sua piscina Tone de 2 mil litros no quintal de sua casa, ou em uma banheira de hidro, mas essa há algum tempo não curtia. ‘Vacas magras’, o marido dizia. Esperava o aniversário de casamento, esperava o dia dos namorados, mas as vacas estavam sempre magras... "Quando elas finalmente estiverem como ele quer, eu é que terei esquecido como é trepar!", pensava. "Trepar mesmo, e não aquela rapidinha antes de ir pro trabalho, ou aquela transa cansada quando a gente vai dormir".
Bom, mas Helena engoliu em seco e entrou na casa da mãe, a coitada estava na cozinha, mais de sessenta anos e ainda estava pilotando o fogão. Por que não contratava uma cozinheira, uma diarista, uma empregada, qualquer coisa? Não era a falta de dinheiro, mas sim a arraigada idéia de que era ela quem tinha que preparar o almoço, mesmo que fosse resmungando e pedindo ajuda a quem se aproximasse para as mais pequenas coisa como acender o fogo do fogão.
O pai com o rabo pregado na poltrona da sala, cerveja numa mão, controle na outra, e na tv um filme de “pau-puro” com um brucutu austro-americano dando porrada e explodindo Deus e o mundo. Ah, aquele seria um grande domingo!
Entou carregando Lia no colo e Rodrigo pela mão. "Cadê seu maridão?!" Foi a primeira pergunta. "Hum, levou trabalho pra casa, vai passar o domingo trabalhando". Que nada, Elton tinha era arranjado uns relatórios atrasados para terminar, algo que ele faria em menos de uma hora, como desculpa para ficar em casa e se livrar da ocasião familiar. Ele poderia ter ido pelo menos para ajudar com as crianças, mas nem o apelo a responsabilidade paternal o fez mudar de idéia: "Ah, não Lena, dá muito bem pra levar os dois, e eu tenho muito, muito trabalho... Além do mais eles precisam visitar os avós, tem quanto tempo que eles vão la, hei...?" "Uma semana." "Tá vendo, ó, muita coisa! Eu fui criado vendo meus avós quase todos os dias...” Ela não deu mais atenção ao discurso, pegou as crianças amarrou nas cadeirinhas e foi embora.
Nessas horas tinha uma vontade louca de fumar um baseado, um daqueles que ela consumia avidamente na época da faculdade... Bom, pelo menos pensar no baseado a fazia relaxar um pouco, pelo menos nos meandros de sua cabeça, bem lá no fundo ela ainda se dava o luxo de sonhar com um baseado.
Mas nem tudo no almoço de família eram lamurias. A parte boa era o bate papo com irmãs, tias a cunhada, pelo menos quando o assunto era homem e sacanagem, mas quando a coisa deslanchava para o lado das feminices, começava a ficar chato. "Eu gosto de passar", "eu gosto de conzinhar", "ah, roupa lavada na máquina não está limpa" – "essas mulheres so sabem ser donas de casa, não sabem ser mulheres" pensava e saia de fininho, ia para a área fumar um cigarro comum mesmo, e apensa no baseado...
Mas o ápice do acontecimento, o clímax ainda estava por vir. Era a hora do almoço, a hora da comilaça, o momento em que todos se encaram e põem as vísceras para fora. Ela jurou pra si mesma que dessa vez se comportaria, que não afrontaria ninguém com seu sarcasmo agridoce, que não retrucaria de língua afiada nenhuma afronta, que se comportaria como uma boa e educada mulher de quase quarenta anos e com dois filhos no colo – afinal tinha que dar o exemplo, afinal a proposta da ocasião era a harmonia e união familiar, afinal ela não queria estragar o resto do domingo que já era enfadonho, com gritos, grosserias e verdades atiradas nas caras uns dos outros feito nacos de carne a leões de circo. Sim, todos se pareciam leões de circos ou hienas da savana africana.
Helena sentou-se à mesa e escutou pacientemente as alfinetadas dos pais (meus Deus, como ainda estavam casados?!), as fofocas das tias, a gritaria das irmãs e seus filhos que não queriam comer, ou pelo menos não queriam comer como ‘gente civilizada’, preferindo jogar comida uns nos outros. Escutou com desdém as colocações políticas quase nazi-fascistas do pai a respeito da política econômica brasileira, dos índios que deveriam ser obrigados a prestar serviço militar, sobre a Colômbia e a Bolívia e que o país tinha que fechar as portas e viver da terra e do petróleo – “O Brasil é auto-suficiente”, “O Brasil é o país do futuro!!!”
Ignorou até mesmo quando o papo voltou-se para ela e o fato de ganhar pouco , de fazer serviço comunitário, e morar de aluguel ao invés de entrar num financiamento, de não ser casada de papel passado. Foi então que percebeu que estava na quinta caneca de vinho, entendeu o motivo de sua indiferença quase altista e entendeu porquê estava vendo todos feito macacos, perturbando uns aos outros e posando de oradores. “AH, MACACOS DE CIRCO, MACACOS ORADORES!!!!” Falou, elevando a voz e caindo na gargalhada. Ninguém entendeu nada e ficaram entreolhando-se meio perplexos enquando ela continuava a repetir enquanto gargalhava “MACACOS DE CIRCO, OS DOZE MACACOS, MACACOS ORADORES...”
Alguém a tirou da mesa, ou ela própria saiu andando. Quando acordou estava na rede da varanda dos fundos. A voz de Elton ao longe a deixou na dúvida se estava sonhando. Não estava, ele tinha ido buscá-la e as crianças.
Depois das despedidas, as piadas dos sobrinhos e o olhar preocupado da mãe, foi embora. No carro, Elton ainda fez troça dela e de sua dor de cabeça, sim porre de vinho dá dor de cabeça, e enquanto ele a sacaneava fazendo os trocadilhos e piadas mais infames que de tanto faze-la rir a deixavam com mais dor de cabeça, ela pensava ‘eu preciso é andar com uns baseado na bolsa, para ocasiões como essa. Pelo menos baseado não dá dor de cabeça’.
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