Não precisou abrir as cortinas para perceber que eram mais de cinco da manhã. Luciano, pulou da cama ao ver a claridade. Tarde de mais! Seis! Seis horas! Tinha perdido a hora. O despertador não funcionou, ou talvez ele não tivesse mesmo escutado. Ficou sentado na beira da cama olhando para a janela...Estava a mais de seis meses sem emprego e toda segunda feira era a mesma historia: acordar às quatro da matina, engolir um café e qualquer coisa sólida que encontrasse na geladeira. Sair de casa antes das cinco geralmente em direção ao Centro da cidade, mas em qualquer canto que oferecesse emprego la estava ele, o primeiro da fila. Entretanto, naquela segunda, não acordou na hora, não conseguiu. Domingo saiu com os amigos e gastou os últimos reais que restavam do auxilio desemprego. "Porra, sou filho de deus! Preciso me divertir, tomar umas cervejas, trepar com minha garota!"
Foi pensando dessa forma que no domingo esqueceu do desemprego, da falta de grana e torrou o que tinha restado. Foi uma boa noite! Papeou com os amigos, levou a menina num motel mediano, coisa que não fazia desde que perdera o emprego, e deixou-a bem satisfeita, voltou pra casa no meio da madrugada e dormiu até as seis. Agora, olhando a claridade de mais uma segunda feira, entrando por sua janela, sem pedir licença, pensava: e agora? O que fazer? O que mais posso fazer?
Puxou um cigarro da mesa de cabeceira, acendeu, e ficou olhando e pensando. "Até você, meu amigo, terei de abandonar por um tempo..." Sorriu de lado com o cigarro no canto boca, achando graça do próprio pensamento. Mas em seguida ficou sério, pensando numa forma de arranjar dinheiro.
Dinheiro...Apenas um papel. Lembrou-se da história do dinheiro, que tinha aprendido na escola, em alguma série do segundo grau (ensino médio). Antes do dinheiro surgir, as coisas eram trocadas: 5 molhos de alface, por uma dúzia de ovos; uma dúzia de ovos por dois litros de leite; um litro de leite por meio quilo de batatas...O dinheiro, segundo o livro, surgira como um vale: uma moeda verde vale 5 molhos de alface, uma dúzia de ovos, dois litros de leite (um litro valia meia moeda verde) e um quilo de batata. Sendo assim, não era necessário ir ao verdureiro levando seus ovos, ou batas, ou jarras de leite, bastava levar o vale – moeda verde – e trocá-lo pela mercadoria. Quem ficava com a moeda verde, trocava-a pelo que precisasse e assim por diante. Pronto: assim surgiu o dinheiro! Um papelzinho que vale muitas coisas. Um papelzinho que foge quando mais precisamos; que temos que guardar no bando onde ele é multiplicado, mas nós não vemos esses lucros, quem os vê são os banqueiros, e os embolsam como pagamento por guardar nossos papeiszinhos em segurança.
Era desse papelzinho que Luciano precisava naquele exato momento. Tragou e soltou a fumaça. Ainda olhando a claridade.
Levantou e foi até a cozinha. A mãe fazia café. Levou um susto ao vê-lo entrar pela porta, descabelado, com cara amassada, sem camisa e cigarro na boca:
"Luciano? Pensei que já estivesse longe!"
"Perdi a hora..."
"Não acende esse troço aqui, sabe que detesto! Como perdeu a hora?! Não tinha que procurar emprego?"
"Sim..."
"Então?"
"Eu perdi a hora..." – disse pausadamente, de forma impaciente – "Há mais de seis meses que faço sempre a mesma coisa, toda segunda feira! Hoje, infelizmente, eu perdi a hora! Pronto! Só isso."
"E vai continuar sem emprego se perder a hora sempre..."
Luciano teve uma vontade louca de mandá-la a merda, mas controlou-se. Era sua mãe.
"Tem café?" Perguntou já olhando o bule e se servindo.
"Nossa que hálito! Agora entendi porque perdeu a hora! Credo! Por favor, não fique como seu pai, está bem!"
Ficou olhando a mãe parado encostado na beira da pia, muito sério, com o cigarro entre os dedos. Teve vontade de responder, mas a vontade morreu quando percebeu que aquilo se transformaria numa discussão para o dia todo, e ela estava pedindo por isso. Não para perturbá-lo, mas para desabafar toda frustração, rancor e tristeza que sentia pela vida que levava. Então ao invés de raiva, teve pena. Não sabia o que era pior, raiva ou pena da própria mãe.
"Que foi? Por que esta me olhando assim?"
"Nada, mãe...nada..."
Abriu a bica e apagou o cigarro. Jogou a ponta no lixeirinha da pia e seguiu de vagar para o quarto.
"O que vai fazer se não vai procurar emprego?" Gritou a mãe da cozinha atrás dele.
"Não sei...Vou ver..."
Bateu a porta do quarto. Sim o que faria nessa segunda feira tão incomum? Era uma boa pergunta. Talvez fosse visitar o pai. Não, essa não era uma boa idéia. Ele provavelmente só estaria de pé, após o meio dia, e ainda meio bêbado da noite anterior. Pensaria sobre isso. Tomou banho se vestiu e saiu, sem dar conta a mãe de onde ia. Ela sairia para o hospital em alguns minutos, e só estaria em casa à noite, mesmo.
Caminhou pelas ruas, sem perceber muito por onde andava. Era tão bom estar na rua, respirar. Sua casa era claustrofóbica. A mãe sempre cobrando, sempre reclamando...Ás vezes, Luciano sentia-se um peso para ela, outras vezes um apoio para suas frustrações, mas de uma coisa tinha certeza, ele estava longe de ser o filho que ela queria, simplesmente porque aquela não era a vida que ela queria.
Engraçado como as coisa são... As pessoas se casam, tem filhos, pra descobrir no meio do caminho que fizeram merda e, então, ao invés de dar um jeito – sei lá (...), aceitar a merda e tentar mudar d’ali pra frente –, não, se afundam mais na merda e levam quem não tem nada a ver. Ela era enfermeira, casou-se com seu pai, sabendo de seu vício. Ao perceber que tinha feito uma bobagem, separou-se, mas sentindo-se frustrada descontava tudo no filho, às vezes sob cobrança, outras vezes com brigas e comparações com seu pai. Luciano, respondia de forma irônica sempre. Essa era uma característica que herdara dela, e que usava contra ela, para defender-se e para ferí-la. Mas ultimamente, andava cansado desse jogo de gato e rato com a própria mãe. Já não era mais um menino e aquilo o cansava, não tinha necessidade de provar nada a ninguém, muito menos a ela. Ela que pensasse o que quisesse dele!
Saiu de seus devaneios quando percebeu que estava na frente da loja onde Roberta trabalhava e deu de cara com ela.
"Oi! Você aqui? Que houve? Não foi procurar emprego?"
"Não. Perdi a hora."
"Mas tinha um anúncio legal ontem. Não lembra?! Uma vaga de técnico em eletrônica..."
"Ah, Roberta! Por favor! Até você agora me cobra esse caralho de emprego?!" Disse sentando no meio fio. "Porra, minha mãe nem me deu bom dia hoje, perguntou o mesmo que você!"
"Desculpe...desculpe...Só achei esquisito você por aqui a essa hora."
"É...esquisito...Tudo bem!" Levantou e virou-se.
"Onde vai?"
"Sei lá...andar...O que mais tenho pra fazer?" Respondeu sem se virar para olhá-la.
Saiu andando. Perdera a calma com Roberta. "Cacete, por que ela tinha que fazer essa maldita pergunta?" Pensou. Já estava puto com a mãe, e agora Roberta!
Roberta trabalhava na loja de conveniências do posto próximo a sua casa. Não tinha nada a ver com o local. Tinha dois piercings nas orelhas, um cabelo pintado de preto e verde, e algumas tatuagens bem a mostra. Só ficou com a vaga, porque aceitou ganhar menos e precisava de um emprego. Qualquer emprego. A noite freqüentava um pré-vestibular. Não sabia que curso faria, só queria um diploma para trabalhar menos e ganhar mais. Ou, pelo menos, trabalhar menos. Eles se conheceram no Caverna rock, um bar onde tocava rock aos fins de semana. Roberta tocava – muito mal – guitarra numa banda de rapazes (o irmão mais velho e dois primos). Ela o chamou para bater papo e a noite terminou no quarto dele. Isso já tinha uns dois anos...Nunca pensou que ficaria tanto tempo com uma garota, mas ficara. Ela tinha muita personalidade e ao mesmo tempo uma doçura que o atraiu. Entretanto naquela manhã, ela conseguiu emputecê-lo. Pareceu sua mãe lembrando-o do emprego. Emprego, emprego, emprego!!!! Estudo, estudo, estudo...!!!! Ela também o cobrava, cobrava que estudasse. Dizia "Se não pelo conhecimento, pelo menos para arranjar um emprego melhor." Ele concordava – "Sim, vou fazer isso, ano que vem entro num curso" Mas o que adianta entrar num cursinho, sem saber o que vai fazer na universidade? Além do mais com o que ganhava não daria. O dinheiro seria todo para pagar o tal curso, como ficariam as despesas em casa? Então, prometia que entraria no cursinho, até pensava no assunto, mas a idéia acabava se perdendo na rotina.
"Vou ver meu pai! O velho deve estar bebum, mas, pelo menos, não vai me atormentar." Pensou. Caminhou, agora menos chateado e até mais animado com a perspectiva de ver o pai.
Tocou a campainha e ouviu a voz baixa perguntado quem era. Só respondeu o nome e ouviu o barulho do portão gradeado abrindo. O pai morava sozinho, no cento e um de um prédio velho de três andares. Separou-se da mãe de Luciano ha 10 anos, o menino tinha 12 na época. Não a maltratava, mas não parava em emprego nenhum, não pagava as contas e todo o dinheiro que conseguiam era para pagar o boteco da esquina. Ele nunca pagou pensão, alegou em juízo que não tinha condições e sua mãe acabou aceitando a situação – ah...como ela gostava de lembrar disso...Luciano, entrou, seu pai estranhamente estava na cozinha fritando ovos.
"Oi filho! Quer pão com ovo?"
"Oi pai!" Respondeu achando aquela situação muito estranha, pra não dizer bizarra. Andou até a cozinha e estacou no portal entre a cortina de contas meio espantado. Seu pai não apresentava sinal de bebedeira, muito pelo contrario, parecia bem sóbrio e ha bastante tempo. Fritava ovos com habilidade...
"Bom te ver, Luciano. Olha o seu ovo."
"Pai, posso perguntar uma coisa? O que é que houve contigo?"
"Como assim? Não houve nada, estou bem. Andaram dizendo que estava doente?"
"Não, não é nada disso...é só que...bom...não sei...você esta...tão....tão..."- Não sabia exatamente como dizer a seu pai que era estranho ele estar sóbrio antes do meio dia.
"Ah, sim. Estou sóbrio!"
"È, está" – disse Luciano, com um sorriso amarelo meio aliviado pela resposta do pai.
"Luciano, tem muito tempo que não nos vemos, hein! Estou freqüentando os alcoólicos anônimos, filho. Duas semanas sem beber." O pai virou-se pra ele sorrindo, colocando o outro ovo no prato. "Vamos comer?!"
Ele, talvez, pela primeira vez viu algo nos olhos do pai. Um brilho, uma vivacidade...Não sabia exatamente o que era, mas o emocionou ver aquilo, ver alguém dentro daquele corpo. "Meu Deus, não deixe que isso se perca." Pensou, de forma inconsciente e se surpreendeu ao perceber esse pensamento. Nunca pensava muito em Deus e nem lhe pedia nada.
"Sim, pai, vamos."
Os dois tomaram café conversando. O pai lhe contou sobre as duas ultimas semanas; como decidiu repentinamente freqüentar o grupo e que estava se sentindo muito feliz. Luciano também ficava feliz por ele. A última vez que conversaram foi para o pai lhe dizer que fumar maconha era "feio". Ah, sim, e uma outra, quando a mãe o pegou no quarto nu sobre Roberta, num dos melhores momentos de uma transa. A mãe exigiu que o pai o aconselhasse, já que esse deveria ser o papel dele enquanto pai e bla, bla, bla...O pai, lhe disse pra tomar cuidado, perguntou se a menina era virgem, e que tinha que ver com que garotas andava, e era necessário se prevenir...e bla, bla, bla....Tudo o que ele já estava careca de saber e mais algumas bobagens do tempo em que seus pais eram jovens...Ele escutava tudo fazendo cara de interessado. Mas para agradar o pai, que nessas ocasiões estava sóbrio, barbeado e com a roupa bem passada. E ele também não lhe dava lição de moral, apenas tentava fazer seu "papel".
Nesta segunda-feira inusitada, porém, a conversa foi outra.
"E você, como esta no emprego?"
"Pai...eu não estou...tem mais de seis meses que me demitiram..."
"Ah, que pena...Mais de seis meses?!..." Perguntou meio constrangido de não saber. "Mas você esta procurando, não é?"
Luciano teve vontade de perguntar por onde ele tinha andado, mas a conversa estava tão inusitada que apenas sorriu e respondeu.
"Sim, todas as segundas, saio pra ver os anúncios de domingo."
Terminaram o café, conversaram por mais um tempo e Luciano achou que era hora de partir...Despediram-se e ele ganhou a rua novamente. Ficou pensando sobre seu pai...A quanto tempo não ia ao apartamento dele? Provavelmente a mais e um mês. Será que a mãe sabia do tratamento do pai? Talvez sim, mas não disse nada porque não levou fé. Melhor, mesmo, ela deixar o velho em paz. Muito ajuda quem não atrapalha.
Caminhou, caminhou sem destino, dando voltas pelo bairro, andando por ruas onde já tinha passado naquele dia, ruas por onde ele passou a vida toda, pensou em ir a casa de algum amigo, mas todos estavam trabalhando àquela hora. Acabou indo parar novamente na loja de Roberta. Ela estava no balcão. Ele do lado de fora acenou. Ela o mandou entrar. Sinal que a chefe não estava.
"E aí?"
"Beleza..."
"Mais calmo?"
"Sempre tô calmo."
"Desculpa hoje de manhã. Não estava te pressionando..." – a voz dela agora, estava doce, suave...
"Tudo bem. Só passei pra te dar um beijo." Ele também suavizou a voz e o olhar.
"Sem beijos...olha as câmeras..." – ela indicou as câmeras com os olhos.
"Caralho, e tem isso!"
"Pois é..." Respondeu ela com um sorriso malicioso.Ela adorava provocá-lo.
"Mais tarde passa la em casa..."
"Vou sim..." ela respondeu com o mesmo sorriso malicioso.
Saiu sem beijar Roberta, mas feliz pq eles se veriam no fim da tarde. Ainda faltava o dia todo pra isso. Um dia inteiro ruminando uma forma de arranjar dinheiro, uma forma de arranjar emprego, o desejo de trepar novamente com Roberta. Ah, mas não restava outra alternativa, a não ser voltar para a casa. Retomou a caminhada, guardando as ansiedades num envelope imaginário...Deveria ser meio dia...
Chegou em casa, olhou os bilhetes da mãe na geladeira. Muitos pedidos, mas um bilhete peculiar. "Seu pai esta freqüentando o AA!" Ela já sabe...Bom, espero que não atrapalhe. E um outro: "Fiz um salpicão pra você". Era a forma dela pedir desculpas. Ele sorriu de lado.
Jogou-se no sofá... Ainda pensava no emprego...Andou durante toda a manhã, mas aquele pensamento estava enraizado em sua mente. O pior era a sensação de que todos pareciam achar que era falta de esforço dele, e, às vezes, ele próprio pensava assim. Era como um estigma, uma marca: desempregado=desocupado; marginal. "Ah, estou ficando paranóico!", pensou. Ficou ali parado fitando o nada por alguns instantes...Agora o sol já queimava, e não havia um canto da sala em que a luz não tivesse entrado e posto a nu. Era meio dia...sim...meio dia...Melhor controlar, não pensar e fazer o que a mãe lhe pediu. Na quarta tem novas ofertas de emprego, no próximo domingo também...levantou-se com o maço de recados na mão. "Bom, por onde começo?!"
5 comentários:
Adoro sua escrita, parabéns! Beijos.
Vc ESTÁ CADA VEZ MELHOR,BJS.
Valeu Lucia! Valeu Edu! bjo pra vcs
Moça to com lagrimas nos olhos!!
Por alguns instantes me vi na pele do Luciano. Vi a minha mãe na pele da dele...
vi a minha viacrusis de cobranças diarias da minha casa e da minha monografia. E a necessidade que a gente tem de encontra no outro algo que nos console pra seguir em frente.
Talvez vida toda passemos por situações assim, de alguma cobrança de variso niveis. As vezes nunca conseguimos "pagar essas cobranças" mas tentamos amenizar as nossas frustações.
Querida Vivi, amei!
Vou vir aqui sempre dar uma espiadinha tá!
Muitosa beijos e Parabéns!
Ana Brum
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