Algumas pessoas (isso é eufemismo, pois na verdade muitas, muitas pessoas) acham que rever a lei de anistia é ferir um compromisso firmado entre governo e sociedade há 30 anos, entre estes o procurador geral da República, Roberto Gurgel, que deu parecer contrário a revisão de seu artigo primeiro - o qual perdoa igualmente os crimes de qualquer natureza por ambas as partes envolvidas no conflito. Acontece que é impossível encarar a lei de anistia como um acordo. Acordo se firma quando as duas partes envolvidas tem poder de barganha, e infelizmente a oposição ao regime militar, em 1979, não tinha força para peitar o governo e barganhar nada. A lei de Anistia, de 1979, fazia parte da estratégia de conciliação*, muito comum na política brasileira, que visa na verdade manter o controle político do grupo que está no poder. Foi fruto de negociações entre a parte moderada do governo militar e setores da oposição, negociação essa dominada desde o início pelo governo. Ou seja, a Lei de Anistia foi praticamente uma imposição do governo para que as forças armadas deixassem o poder. O processo de “descompressão” como os militares gostavam de dizer – sempre usando termos ligados as ciências biológicas ou exatas – já era estudado durante o governo Médice, e durante o governo Geisel foi levado a cabo. O lema era “Abertura lenta, gradual e segura”. Ou seja, o processo de abertura política foi orquestrado desde o início pelo próprio regime, ele é que ditou as regras da “abertura”, cendendo aqui, conciliando ali, manipulando acolá. Por tanto não há compromisso algum firmado entre o então governo ditatorial e a sociedade, que mereça algum "respeito".
Agora o que mais me deixa indignada é quando dizem que uma possível revisão da lei de anistia seria uma tentativa de reescrever a história. Essa foi a afirmação mais ridícula que já ouvi. Há muitos anos, quando entre para a faculdade alguns amigos meus me emprestaram um livrinho de um historiador atualmente pouco visto na faculdade, infelizmento eu não me lembro o nome, mas no livro havia uma passagem da qual me lembro até hoje. Dizia o seguinte (em linhas gerais): uma montanha é sempre uma montanha nunca uma planice ou outeiro, entretanto sua imagem muda de perspectiva de acordo com o local de onde é observada. Os fatos são os fatos, não podem ser modificados ou apagados, mas a escrita da história, esta não é estática, ela se modifica de acordo com os interesses e idéias em voga em dada sociedade e com as escolhas políticas de quem a escreve. Espero que chegue o dia em que os livros didáticos falarão sobre a instituição de uma lei de anistia em 1979, extremamente injusta que deixou livre vários torturadores, e que a mesma lei em dado ano da segunda década do século XXI foi revista e vários torturadores, alguns em idade avançada, finalmente ocuparam o banco dos réus. Historia é movimento e é feita todos os dias!
Uma segunda questão: quando se clama pela revisão da lei de anistia, ninguém está falando de "desfazer a história”, o que se quer é em aparar arestas que permanecem soltas até hoje, o que se quer é que se faça justiça! Fala-se no reconhecimento de que aqui no Brasil houve uma ditadura tão violenta e sanguinária como qualquer outra da América Latina; no direito a saber o que foi feito do corpo de mais de cem pessoas. Essa não deveria ser uma preocupação apenas pessoal de quem teve um filho, ou marido, irmão, pai desaparecido, mas sim uma questão que diz respeito à sociedade como um todo. É uma questão de cidadania, de se ver como cidadão e de ver o outro como cidadão também, de reconhecer que a dor dele poderia ser a sua, que a injustiça que é cometida contra ele quando lhe negam informações sobre uma parte de seu passado, poderiam ser cometida contra você.
Desde o fim do regime militar várias organizações tendo como bandeira os direitos humanos e a luta contra o terrorismo de estado, tem trabalhado no sentido de trazer a tona várias a várias histórias de tortura, (não apenas dos “anos de chumbo”) na tentativa de mostrar a sociedade o que é o terrorismo de Estado e como a prática de tortura e o abuso dos órgãos de repressão do Estado contra civis ainda é algo comum e incontextada na sociedade - principalmente quando o abuso é cometido contra as pessoas mais pobre e marginalizadas. Por tanto a revisão da lei de 1979 não é algo atual, muito pelo contrario, é um clamor que existe desde o fim do regime, em meados da década de 1980 e essa questão de escrever ou reescrever a historia não figura entre as preocupações dos envolvidos.
Por fim cito a frase marcante do ilustríssimo Salvador Allende:
“A historia é nossa e a fazem os povos!”
* Mais detalhes sobre o conceito de "conciliação" e "contra-revolução", o processo de abertura política no Brasil e a lei de Anistia, ver: Lemos, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós 1964. IN: Topoi. Revista de Historia. Rio de janeiro, Jun-Dez, 2002. Vol.: 03, pag. 287-313.
** Infelizmente eu realmente não lembro o nome do autor do livro. Eu acho que é David Kar, mas infelizmente duas das minhas principais fontes de consulta - a base Minerva e a Bibliteca Nacional estão com seus catálogogos e obras gerais indisponíveis.
Um comentário:
temos que botar mais fogo neste fogueira!!!
As vezes acredito que nosso povo é realmente sem memória... 1979 foi ontem. Os cadaveres dos desaparecidos ainda fedem sobe nossos narizes... E arde aos olhos dos assassinos. A ditaduta levou consigo o ensino do valor a arte, o ensino de música e filosofia e ainda nos deixou cegos na geografia e na historia com decorebas soltas. Pensar pra que? Pra revendicar a liberdade ou para mudar a historia social do país?
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