4.7.09

Eu não sou cachorro, não

"O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.

Não tinha pelo menos um cozinheiro com ele?

Filipe da Espanha chorou quando sua Armada naufragou.

Ninguém mais chorou?"


Bertolt Bretcht*



Nessa semana que passou, voltei a ler um livro que já tinha lido há uns cinco anos mais ou menos. Eu o li quando trabalhava com um amigo que é cego - eu era ledora - e talvez se não o lesse por esse motivo jamais teria a oportunidade de conhecer um trabalho historiográfico tão bem cuidado e bonito. O livro em questão chama-se "Eu não sou cachorro, não", numa clara referencia ao clássico rit de Waldick Soriano, cantor que fez muito sucesso na década de setenta cantando boleros e músicas conhecidas como de "dor de cotovelo" e trata exatamente dessa produção musical, e todo o processo que envolve sua marginalização e esquecimento pela sociedade e consequentemente pela historiografia.
Trabalhando com conceitos como memória e esquecimento e lugar social , Paulo César de Araújo, desvela todo o processo de marginalização da produção cultural cujo lugar social é o das classes populares.
Muito se fala da resistência a ditadura expressa em letras bem trabalhadas de cantores e compositores consagrados como Chico Buarque, Caetano Veloso, Taiguara e tantos outros. Paulo César de Araújo nos diz que esse tipo de música foi designada pela critica da época como Musica popular brasileira (MPB) e é proveniente de um lugar social muito específico, é produzida por uma classe média universitária intelectualizada e por vezes de esquerda. Por esta razão, expressam uma visão de mundo relacionada ao lugar social de sua produção. Tanto envolvendo a temática de protesto, quanto temática social, ou romântica os códigos contidos nessas canções remetem a forma de ver o mundo, a experiência de vida da classe média.
Da mesma forma a produção cultural tachada de "brega", "cafona", "musica de empregada", também possui um lugar social de produção, está associada ao universo da gente comum, das classes populares; os valores expressos em suas letras possuem elementos do universo cultural desse extrato social, difuso, composto por aquelas pessoas que não vivem no meio rural, mas na periferia das grandes cidades ou nos subúrbios. Esta produção cultural, longe de ser banal expressa sim código de valores, experiências cotidiana, percepção da realidade e formas de resistência dos setores populares.
Entretanto, essa produção cultural nunca é mencionada em estudos historiográficos, muito pelo contrário, a tendência da intelectualidade sempre foi vê-la com uma certa antipática e até ironia. Da mesma forma a sociedade lembra desses cantores pejorativamente - "musica de empregada".
Esse processo de esquecimento da música "brega", não é algo gratuito. Paulo César Araújo relaciona a marginalização da musica "brega" a todo um processo de profilaxia estética que envolvia a produção de uma imagem de um Brasil moderno, imagem essa afinada com os interesses políticos do regime de então - a ditadura militar. Estendendo sua análise aos programas televisivos, mas sempre enfocando a produção musical, o autor relaciona ao surgimento da Rede Globo - patrocinado pelo regime - à abertura de um espaço de divulgação entre as massas do trabalho de artistas provenientes da classe média, a imposição de um padrão estético "moderno", relacionado a sociedade urbana industrial. Nesse sentido aponta as novelas, veiculadas em três horários como a grande vitrine do padrão estético e meio de divulgação da produção musical da classe média. Não era interessante para o regime que a televisão - veículo de comunicação que se popularizava na época - mostrar as mazelas do Brasil, muito menos dar espaço para as manifestações culturais e políticas desse outro Brasil tão distante do modelo idealizado pelo regime.
Ao narrar e comparar o caso dos irmãos Dom e Ravel, que ao gravarem "Eu te amo meu Brasil" em pleno governo Médice, auge da repressão, e foram perseguidos e alijados do meio artístico, ao episódio da comemoração do sesquicentenário da independência do Brasil, onde Elis Regina gravou a chamada e participou de tal evento, patrocinado pelos militares, o autor sinaliza para um terreno espinhoso - a questão classista. Se Dom e Ravel foram execrados por uma crítica identificada como esquerdista que não podia tolerar manifestações de apoio à ditadura por parte dos artistas, o mesmo não se deu com Elis Regina, devidamente anistiada após enviar alguns cheques para o movimento sindical do ABC e gravar várias músicas de protesto contra a ditadura. A indulgência em relação a Elis, segundo o autor diz respeito a uma "solidariedade de classe", uma vez que Elis fazia parte da classe média, da qual também faziam parte seus críticos, ao passo que Dom e Ravel eram representantes autênticos do “populacho”.
Cruzando informações de uma variedade de fontes que vai desde documentos oficiais referentes a censura, até depoimento dos artistas da época, e sem poupar nenhum nome, o resultado é um trabalho conciso, inovador e que preenche uma lacuna historiográfica, gerando polêmica e até mesmo um mal estar, pois o livro questiona nossas atuais convicções e modo de vida.
Um outro ponto interessante é que os conceitos com os quais o autor trabalha ficam muito bem explicados e o livro é de fácil leitura, sendo atraente não somente para o público acadêmico, mas também (e isso é muito importante) para o público geral. Por fim, é uma ótima leitura.

* * * *

Confesso que a primeira vez que li esse livro, fiquei profundamente incomodada, e decidida a rebater todos os seus argumentos. Estava, isso sim, imersa em preconceito e arrogância. Mas depois de passado o estranhamento inicial e tendo percebido que ali estavam retratadas varias e varias pessoas que eu conhecia, de familiares meus, dei o braço a torcer e reconheci que é uma ode a musica popular de verdade, aquela feita pelas pessoas comuns que sustentam esse país e que nunca são lembradas, estão sempre em último lugar nas prioridades políticas e sociais. Na ultima quarta, quando voltei a lê-lo, lembrei de meu avô. Meu avô veio do interior do estado do Rio, da cidade de Madalena. Chegando na cidade grande fez de um tudo. Foi pedreiro, entregador de sorvete e por ultimo embalador em uma firma de mudanças. Tinha o sonho de comprar um sítio e voltar para o interior, quando se aposentasse. Nunca realizou seu sonho. Vitima de uma cegueira repentina, teve sua aposentadoria antecipada, não via mais gosto na vida. Recuperado da depressão e de uma anorexia nervosa, viveu até 2003, quando então partiu. Vários dos artistas citados no livro eu escutei na casa dos meus avós quando era criança e por isso, passado o estranhamento inicial, eu me toquei que quando negava o valor da produção musical dos "bregas" eu estava negando o valor do meu avô, justamente uma das duas pessoas mais simples e bacanas que eu ja conheci nessa vida. Foi impossível não chorar.
Esse texto é para o meu avô, meu querido avô...


*Citação contida no início do livro.

Eu não sou Cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar.
Paulo César de Araújo
Rio de janeiro: Record, 2002.

4 comentários:

Itárcio Ferreira disse...

Emocionante seu texto, mexe com nossos conceitos e emoções. Vou ler o livro.

Alex Mugiba disse...

me interessei pelo livro, a propósito qual seu email?

Zerfas disse...

Vivi! vou indicar o seu texto a uma professora, que estuda a geografia da musica... se isso é possivel podemos pensar que este tipo musical que tb é MPB sim, tem um contexto de onde, pois indifica o limitrofe entre a area rural e a urbana, de um periodo onde a periferia da cidade estava no seu intorno e guardava muitos ares rurais, coisa que hj não se vê. O Brasil se divide em agrario e urbano e a periferia esta no centro da cidade faznedo parte dela tecendo os seus construtos com ela....
Vale outras reflexões o texto. Beijocas
Zerfas

Romanzeira disse...

Oi, pessoal! Desculpem a demora.
Obrigada, Itarcio e Mugiba e sejam bem vindos ao Pessoas. Livro pois ele é muito bom.
Valeu pelo comentário Ester, o livro deve mesmo ajudar essa sua amiga.

O email do Pessoas para correspondência é pessoasetempo@gmail.com