Uma coisa que nunca fiz em fotografia é fotografar pessoas, rostos de pessoas, como alguns fotógrafos, sobretudo fotojornalistas, que curtem fotografar os rostos principalmente os rostos de pessoas que sofrem nas guerras, ou com a fome, rondadas pela morte, com a vida por um fio. Não sei... Eu acho que o rosto das pessoas é algo de muito respeito, assim como a dor alheia. Devem ser preservados, respeitados.
Por isso, quando li A fronteira da arte, essa questão voltou a minha cabeça. Qual o limite entre o sensacionalismo, a vontade de chocar por pura vaidade, pelo desejo do furo, pelo fascínio de ser a pessoa certa no lugar certo, e a sensibilidade humana, aquele alerta que pisca bem no fundo da mente para sinalizar que extrapolamos um limite? Lembrei de uma discussão que tive, por e-mail mesmo, sobre um "pseudo-artista" mexicano que numa bienal de arte, se não em engano, na República Dominicana, matou de forme e sede um cachorro que ele pegou na rua e deixou amarrado no espaço que lhe cabia no museu de arte onde ocorria o evento. Onde está a solidariedade e a sensibilidade? Virou conversa fiada? Utopia?
Existe um limite muito tênue entre o sensacionalismo, entre a espetacularização do sofrimento e da tragédia, e o desejo genuíno de denunciar. Se o desejo é denunciar, é mostrar ao mundo as injustiças da sociedade, a desumanidade da guerra, o fotografo não pode abdicar de sua própria humanidade, não deve se esquecer que ali na sua frente há uma pessoa, alguém que sofre, que sente dor física e na alma, que essa pessoa não é um modelo, que aquela dor é genuína e deve ser respeitada. É o respeito à vida, à dignidade humana, à capacidade de se solidarizar pela dor de outrem, que diferencia seres humanos de monstos; é a sensibilidade, a capacidade de observar o mundo, as pessoas, os sentimentos humanos que faz um artista.

“A Fronteira da Arte
Foi a batalha mais longa de todas que se seguiram em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite, quando as primeiras granadas caíram das montanhas, e durou toda a noite e foi até a tarde do dia seguinte. Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general, os tiros para o alto começaram os festejos.
Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmera, também carregada e pronta para disparar, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando dos irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobreviventes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos. Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos.
Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, se meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos, jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis.
Julio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.
Julio deixou seu fuzil no chão e empunhou a câmera. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância, e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente enquadrados contra o muro recém-mordido pelas balas.
Julio ia fazer a foto de sua vida, mas o dedo não quis. Julio tentou, voltou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmera, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio.
A câmera, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde."
*O livro dos abraços. Eduardo Galeano. Porto Alegre: LP&M editora, 2000. pag. 26.
4 comentários:
Esse livro é fantástico.
Sim, Klamber, esse livro é fantástco e essa crônica é uma das mais belas.
Viviane,
Amei a crônica e seu post. Lembrei-me daquela foto famosa do menino africano à beira da morte, sendo observado atentamente por um urubu. Uma revolta tão grande toma conta de mim quando penso neste assunto tão bem abordado no seu blog.
POis é Carla, é um assunto delicado pois se agente fala em "limites" na arte, nossa, sofre uma avalanche de criticas,mas eu penso que antes de querer chocar, ou fazer a foto da sua vida, a pessoa deve pensar que ali na sua frente tem alguem igualzinho a ela, tem uma vida...
Conta-se que o fotografo que tirou a foto da criança e do urubu, pouco depois se suicidou. Não sei se é verdade ou é lenda...
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