16.11.08

Sentidos...


"Eu vi tudo

Eu vi a escuridão

Eu vi a luminosidade

De uma faísca

Eu vi o que escolhi ver

Vi o que precisava

E isso basta

Querer mais seria avidez"




Não estou com muito tempo para escrever, mas no início da semana que passou assisti um filme que estava a fim de assisti há algum tempo, na verdade há alguns anos. Chama-se Dançando no Escuro, foi lançado em 2000, dirigido por Lars von Trier. Eu achava que era apenas um drama e me surpreendi ao descobrir que era um musical – pra variar não gosto muito de musicais. Mais surpresa, ainda, fiquei ao me depara com uma história sensível que vai tomando um rumo trágico e com a atuação comovente de Björk.

O filme conta a história de Selma, imigrante da extinta Tchecoeslovárquia (a ação se passa nos EUA, anos 60), que trabalha numa fábrica e fazendo outros pequenos serviços com o objetivo de juntar dinheiro para a operação do filho, quando ele fizer 13 anos. O motivo da operação é que o menino tem a mesma doença hereditária da mãe, uma espécie de cegueira progressiva. Não há salvação para o estado de Selma, e ele fatalmente ficará completamente cega um dia, mas uma operação pode salvar seu filho do mesmo destino. Selma mora de aluguel num trayler no jardim de uma família e as coisas se complicam para ela, quando seu senhorio, que passa por problemas financeiros, descobre que ela tem mais de dois mil dólares guardados.


Há cenas lindíssimas e é uma exaltação dos sentidos. As cenas musicais, iniciam-se quase todas com a percepção da cadência do ruído no ambiente. Uma das tomadas geniais nesse sentido, a primeira tomada musical do filme, acontece na fábrica e a ação se inicia partindo do barulho e do trabalho mecânico no galpão onde Selma (Björk) e Kath (Catherine Deneuve) – sua amiga – trabalham fabricando pias de aço. Bacana mesmo, bonito de se ver. Mas a seqüência musical que eu mais gostei foi o momento em que Selma está voltando pra casa seguida por Jeff, pretendente da moça. Eles estão caminhando pelos trilhos do trem numa ponte, a conversa entre os dois é sobre a visão - esse é o momento em que Jeff percebe a cegueira de Selma. Todo diálogo entre eles é cantado e tanto e gira em torno do sentido da visão. É emocionante quando Jeff questiona sobre tudo que Selma não verá porque ela está quase cega, e ela responde cantando: Eu vi tudo/Vi a escuridão/E a luminosidade de uma faísca/Eu vi o que escolhi/vi o que precisava/E isso basta/Querer mais seria avidez.


Björk começa meio mal, pelo menos foi o que eu achei, mas no decorrer do filme cresce muito dando um show de interpretação dramática. Também me surpreendeu muito ver Catherine Deneuve atuando. Eu estava acostumada com a clássica imagem de A bela da tarde e outros filmes que ela fez em que seus personagens sempre possuem uma certa sensualidade. Neste filme ela é coadjuvante, interpreta Kath, amiga de Selma, uma operária, forte, determinada, meio rabugenta e extremamente humana - dá pra acreditar: a "bela da tarde" na pele de uma operária?! Mas esteve e foi perfeita. Sua personagem cria um equilíbrio na história, é como se ela fosse o lado racional de Selma, aquela que a puxa pra a realidade para o lado prático da vida.


A percepção do mundo através dos sentidos é o fio condutor do roteiro e principal argumento para as ações de Selma, para quem mais importante que salvar a própria vida, é salvar o filho de uma vida como a sua, salvá-lo da cegueira, permitir que ele tenha um futuro melhor, cheio de luz. Ao mesmo tempo há uma crítica sutil ao american way of life, onde só tem voz e vez quem tem grana, posição e aparência; onde pobres, mulheres, negros e estrangeiros são marginalizados e apesar do discurso da igualdade perante a lei, do qual os americanos se gabam, quem vacila não tem uma segunda chance.

Nesse sentido o filme lembra muito o sucesso recente do mesmo diretor Lars von Trier, Dog Ville, sendo que neste o foco do roteiro é a crítica à sociedade americana. Já em Dançando... o roteiro pende para o existencialismo.

É um filme comovente, bonito, com cenas tocantes e extremamente fortes, um bom roteiro que deixa o espectador ansioso e preso do início ao fim, muito bem amarrado, onde as ações e as motivações dos personagens fazem todo o sentido. Com uma dupla de atrizes fantástica. Um lindo filme triste, sobre pessoas simples, com uma vida simples e por vezes trágica.


* * * *


Lembrei do meu avô. Meu avô ficou cego com mais ou menos 61 anos, eu acho. Ele era uma pessoa super ativa e progressivamente foi perdendo a vontade de viver, passou por problemas sérios, ficou anoréxico, quase morreu, mas se recuperou. Entretanto nunca mais voltou a enxergar. Um dia eu estava conversando com ele e então me veio a cabeça fechar os olhos para ficar como ele, para entender o que ele via, o que ele sentia. Coitado do meu avô... Naquele instante eu entendi porque, um dia, ele perdeu a vontade de viver.

Dançando no Escuro/Dancer in the dark
ano: 2000
direção: Lars von Trier
Atrizes: Björk e Catherine Deneuve
Prêmios: Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes


6 comentários:

Zerfas disse...

Falando em "Dançando no Escuro", tive a sorte e o azar de ver este filme no cinema, bem fui sem saber o que iria ver, só sabendo q era um musical. A 'porrada' no fundo do estomago ainda doi quando lembro do filme, o que ele tem de bonito ele tem de "tenebroso", dosa de forma simetrica uma estetica dos finais felizes com um final increvelmente supreendente, ao mesmo tempo que vc se apaixona vc consegue ter odio dos personagens, não sei por eles serem mais reais na minha mente ou porque não quero acreditar que as pessoas possam ser realmente crueis consigo e para com os outros... Vivi fico feliz que vc consegui ver este filme de forma mais ampla e tão delicada. Parabéns pelo brilhante comentario cinematografico!

Romanzeira disse...

Oi Ester. Obrigada! Bom, na verdade, na hora que vi o filme também fiquei com um nó na garganta, depois é que fiquei pensando, refletindo e então escrevi. Pra vc ter uma idéia, eu o assiti na última terça feira - isso tem quase uma semana - e só consegui escrever um texto coerente sobre ele, ontem.

Bjão!

Romanzeira disse...

Acho que se eu fosse assistir no cinema, ia me debulhar em lágrimas. rsrsr...

Sâmia disse...

Poxa, Vivi, estou me sentindo envergonhada. Vi Dançando no Escuro no cinema. Éramos vários amigos, e a única que não chorou fui eu, tendo sido chamada de insensível por bastante tempo. Pra completar, mal me lembro do filme, e sequer consigo me lembrar da Catherine Deneuve nele.
Isso, pra mim, que choro vendo até comercial de margarina, e que costumo me lembrar dos bons filmes que vi, é assustador...
Beijinhos!

Romanzeira disse...

Sâmia, não se envergonhe, olha vou contar uma coisa que é uma heresia, eu não gosto, conscientemente, da Clarisse Lispector!!!!!!!!!!!!!!!!!
Acho a narrativa dela um tantinho a mais do ponto, ela simplesmente fica ruminando as palavras e os sentimentos, o que é bom, mas passa do ponto. E "A paixão segundo GH" pra mim é um livro horroroso.
Pronto, falei! Agora, pode tacar tomate podre!!! rsrs....

Sâmia disse...

Ploft!

Tomate em você!

Hahahahaha!

:P