Ia dirigindo calmamente. A filha no banco de trás brincava de boneca, de repente fez a pergunta bombástica. “Por que temos que ver a tia Vera? Eu queria brincar na pracinha”. Ela não respondeu. Continuou no volante. Sim, por que tinham que ir ver tia Vera? “Porque é uma ocasião familiar!” Respondeu sua mãe, no dia anterior, quando ela fez a mesma pergunta que a poucos instantes a filha tinha feito.
“Você já esta tão distante...Nessas ocasiões pelo menos tem de aparecer!” A mãe era assim, dramática. Ela tinha se distanciado. É claro, se distanciou desde que começaram a falar mal dela quando ficou grávida. Sabia que a tia Vera, iniciaria o interrogatório de sempre: “Como esta o seu marido...como é mesmo o nome dele...Marcos, não é?” “Não é meu marido tia, a gente não se casou...” “Ah, claro é mesmo..Lembro que ele era músico, não é isso...E o negócio, engrenou? A Juliana, termina esse ano odontologia e já tem consultório montado.”
Seu estomago começou a doer, provavelmente não comeria nada nesse almoço. Teria que aturar os comentários e o olhar da tia, recheado com uma suposta piedade (o que não deixava de ser detestavel!), mas que na verdade guardava uma satisfação terrivelmente humana e cruel, de ver alguém se dando mal, de tirar alguém por fracassado. No fundo, bem no fundo, tia Vera se deliciava com a brincadeirinha de encurralar a sobrinha com tais indagações – sobre as quais, já sabia muito bem as respostas –, como um gato perseguindo um rato.
Por que tinha que ir nesse raio de almoço, então? Porque a mãe lhe pediu. Porque não fugiria das investidas infernais de tia Vera. Porque queria mostrar, que apesar de ser mãe solteira, do pai de sua filha ser um idiota que não dava notícias a mais de um mês, e ela ter de sustentar a filha e a si mesma sozinha, como tradutora e fazendo outros mil bicos, apesar de tudo isso ela não estava nem aí para o que a merda da família pensava! Não, não era por nada disso - nem pela mãe, nem por seu próprio orgulho. Era porque ainda mantinha o velho grilhão imaginário que a prendia a esse resto de família.
“Você já esta tão distante...Nessas ocasiões pelo menos tem de aparecer!” A mãe era assim, dramática. Ela tinha se distanciado. É claro, se distanciou desde que começaram a falar mal dela quando ficou grávida. Sabia que a tia Vera, iniciaria o interrogatório de sempre: “Como esta o seu marido...como é mesmo o nome dele...Marcos, não é?” “Não é meu marido tia, a gente não se casou...” “Ah, claro é mesmo..Lembro que ele era músico, não é isso...E o negócio, engrenou? A Juliana, termina esse ano odontologia e já tem consultório montado.”
Seu estomago começou a doer, provavelmente não comeria nada nesse almoço. Teria que aturar os comentários e o olhar da tia, recheado com uma suposta piedade (o que não deixava de ser detestavel!), mas que na verdade guardava uma satisfação terrivelmente humana e cruel, de ver alguém se dando mal, de tirar alguém por fracassado. No fundo, bem no fundo, tia Vera se deliciava com a brincadeirinha de encurralar a sobrinha com tais indagações – sobre as quais, já sabia muito bem as respostas –, como um gato perseguindo um rato.
Por que tinha que ir nesse raio de almoço, então? Porque a mãe lhe pediu. Porque não fugiria das investidas infernais de tia Vera. Porque queria mostrar, que apesar de ser mãe solteira, do pai de sua filha ser um idiota que não dava notícias a mais de um mês, e ela ter de sustentar a filha e a si mesma sozinha, como tradutora e fazendo outros mil bicos, apesar de tudo isso ela não estava nem aí para o que a merda da família pensava! Não, não era por nada disso - nem pela mãe, nem por seu próprio orgulho. Era porque ainda mantinha o velho grilhão imaginário que a prendia a esse resto de família.
Se fosse por orgulho, o que a impediria de dar uma boa resposta a tia, quando esta a jogasse no beco sem saída de suas perguntas mordazes? O que a impediria de dizer: “pois é tia, é uma pena que eu tenha me formado em letras, não é? Mas nunca tive vocação pra ficar olhando a boca podre de dondocas fumantes e muito menos vocação pra puta, como a Juliana, que deu pra todos os coroas ricos da zona sul. Só assim ela conseguiu montar o consultório e sustentar essa cobertura no Leblon, porque seu salariozinha de merda de aposentada da prefeitura não dá pra tanto, não é?!” Sim, várias vezes pensou em dizer isso à tia, mas não podia. E por que não podia? Porque essa lógica familiar, que faz as pessoas perdoarem até o imperdoável, estava enraizada nela.
Antes de pensar na humilhação que faria a tia, uma sexagenária, passar, antes da certeza de que essa lavada de roupa suja não mudaria sua vida, nem mudaria a forma de pensar de sua tia, ou faria dela uma pessoa melhor, em resumo, antes de concluir que não faria a menor diferença na vida de ninguém, falava mais alto uma obrigação familiar. Uma cumplicidade muda, que permeava os relacionamentos, que segurava uma família. Romper com isso era desestruturar a instituição, por abaixo o castelo de cartas, e desestruturar sua própria vida, que se apoiava, em algum grau, na dependência psicológica desses laços já puídos. Percebia, claramente, que era tão hipócrita participando do teatro, quantos seus atores mais antigos. Quando é que esqueceria isso, quando é que se libertaria?
O carro parou na frente do prédio. Olhou para a filha, no banco traseiro. Ela ainda brincava distraída com a boneca. Um flanelinha já lhe fazia sinal para ocupar uma vaga. Ela olhou o prédio, se inclinou mais e mirou a cobertura. Piscou, rápido. Só tinha uma coisas a fazer: ficar ou sair. “É mãe, dessa vez não vai dar. Fico te devendo essa.” Deu marcha-ré, manobrou a Fiat e saiu pelo mesmo caminho que chegou. Desligou o celular, tinha certeza que a mãe ligaria. “Ah, não, amanhã a gente se entende.”
Dirigiu até chegar ao Leme e parou para beber água de coco. O barulho do mar, das ondas arrebentando na praia, a deixava mais calma, mais serena. Sentia-se leve agora. Olhou para filha, que tomava água no canudo com um ar solene. Passou os dedos nas bochechas da garota que lhe sorriu um sorriso banguela, largando o canudo. Aquele sorriso era tudo. “Não, ela não viverá essa hipocrisia, a menos que queira”, pensou. “Vamos à pracinha, filha?!” Seguiram felizes para o carro, era uma viagem longa até o Meyer. Atrás delas o mar, infinito, enorme, ainda se batia na areia.
Antes de pensar na humilhação que faria a tia, uma sexagenária, passar, antes da certeza de que essa lavada de roupa suja não mudaria sua vida, nem mudaria a forma de pensar de sua tia, ou faria dela uma pessoa melhor, em resumo, antes de concluir que não faria a menor diferença na vida de ninguém, falava mais alto uma obrigação familiar. Uma cumplicidade muda, que permeava os relacionamentos, que segurava uma família. Romper com isso era desestruturar a instituição, por abaixo o castelo de cartas, e desestruturar sua própria vida, que se apoiava, em algum grau, na dependência psicológica desses laços já puídos. Percebia, claramente, que era tão hipócrita participando do teatro, quantos seus atores mais antigos. Quando é que esqueceria isso, quando é que se libertaria?
O carro parou na frente do prédio. Olhou para a filha, no banco traseiro. Ela ainda brincava distraída com a boneca. Um flanelinha já lhe fazia sinal para ocupar uma vaga. Ela olhou o prédio, se inclinou mais e mirou a cobertura. Piscou, rápido. Só tinha uma coisas a fazer: ficar ou sair. “É mãe, dessa vez não vai dar. Fico te devendo essa.” Deu marcha-ré, manobrou a Fiat e saiu pelo mesmo caminho que chegou. Desligou o celular, tinha certeza que a mãe ligaria. “Ah, não, amanhã a gente se entende.”
Dirigiu até chegar ao Leme e parou para beber água de coco. O barulho do mar, das ondas arrebentando na praia, a deixava mais calma, mais serena. Sentia-se leve agora. Olhou para filha, que tomava água no canudo com um ar solene. Passou os dedos nas bochechas da garota que lhe sorriu um sorriso banguela, largando o canudo. Aquele sorriso era tudo. “Não, ela não viverá essa hipocrisia, a menos que queira”, pensou. “Vamos à pracinha, filha?!” Seguiram felizes para o carro, era uma viagem longa até o Meyer. Atrás delas o mar, infinito, enorme, ainda se batia na areia.
14 comentários:
Moça!
Parabéns! essa historia é fascinate .. quanto pode ser real para muitos em muitas vezes.. quantos de nós não suportamos situações como essas e gostariamos de mudar ... muitos tem medo; no momento q enfrentamos e mudamos a direção quebramos as regras familiares.. mas não deixamos de as te-la conosco...
Oi, Viviane!
Vi seu comentário no meu blog e vim conhecer o seu!
Identifiquei-me muito com essa crônica! Coincidência ou não, sou formado em Letras e já trabalhei com tradução, e sei como esse meio é pouco valorizado pelas "tias Veras" da vida. Acho que todos nós temos uma representação dela em nossas famílias!
Adorei o texto!
Bjos
Lindo conto!!! Porque os parentes muitas vezes são uma maldição!!!
Respostas:
Ester: Valeu, Ester! Sim, tomar uma atitude não significa necessariamente romper, mas colocar limites.
Eduardo: Valeu Eduardo! Pois é...parente as vezes é serpente! eheh
Luiz Felipe: Obrigada Luiz Felipe, estaja sempre por aqui. Caramba, coincidência mesmo! Vc ja trabalhou com tradução?! Assim como os estudantes e profissionais de letras, os de historia são alvo de preconceio também. Eu, que faço faculdade de história, ja ouvi umas coisas...rsrsrs. Legal seu comentário. bjs.
Olá Viviane,
que legal essa leitura que acabei de fazer. Você consegue captar bem o cotidiano.
Beijos.
Caso necessite, indico secretária eletrônica.
Rs...
Beijos!!!
P.S. Adorei a parte das fotos.
muito bom!
isso me lembra tanto tanta coisa...
beijos
Muito bom, as relações familiares sempre dão boas histórias. Ainda bem que ela viu que não dava para continuar daquele jeito. QUero avisar que eu retornei, já tem coisa nova lá no meu blog.
Pois é Vivienne,morava perto da vila militar, eu amava aquele lugar e tenho boas lembranças e meus avôs tinham uma casa antiga em marechal hermes,tenho 25 anos, vai saber se a gente não se cruzou e nem sabia?...bons tempos aqueles,mas agora estou mais paulista do que tudo rsrs...vou te linkar no meu outro blog de contos e crônicas goiabitasdavida.zip.net.Beijuss
"E por que não podia? Porque essa lógica familiar, que faz as pessoas perdoarem até o imperdoável, estava enraizada nela."
Simplesmente a realidade! Muito bom mesmo! Já vi relacionamentos amorosos se terminarem por conta dessas e outras infindáveis visitas melodramáticas! Ahahahahahah! Gostei também da parte final, água de côco, mar e tudo mais!
Gostei mesmo! Sem ironia nenhuma!!!
Parabéns!
Tem uma regra básica de qualquer narrativa que diz "não mostre, conte".
Você esbarra nela em quase todo parágrafo, pra não dizer do tom de tristeza que vc tenta injetar à força sem conseguir o efeito.
E se é pra ficar putinha e falar que "tenho inveja", então publique seus textos na sua gaveta e não no blog, já que você tem certeza que são ótimos e qualquer um que discorde é 'invejoso'...
Anônimo, ou anônima...Gostei da crítica. O lance de “contar” e não “mostrar”, é uma duvida que sempre tive, mas como todos que me lêem nunca atentaram para isso, achava que era apenas minha auto-crítica exagerada. Obrigada, a proposta deste blog é essa mesmo: que as pessoas deixem suas opiniões, impressões, sejam elas boas ou ruins.
Agora, não entendi o lance da inveja! A crônica “Da inveja” diz respeito a uma situação muito pessoal, que vivi, e não tem nada a ver com escrita, ou com qualquer pessoa que leia o que escrevo, ou a alguém de quem eu leia os textos. Respeito muito todos que lêem o que escrevo, da mesma forma que respeito muito os autores que leio na net. Se tivesse que fazer qualquer crítica, faria com meu nome, no blog da pessoa, na cara, e não escrevendo anonimamente.
Só me pergunto o que te fez pensar que esse texto era pra você? Nem sei quem você é, pois você não se identificou! Se tinha tanta certeza que você era o motivo do texto, se tem tanta confiança em si mesmo, deveria se mostrar.
Na verdade eu fiquei bitolado pq em qualquer blog que vc poste uma crítica, vai aparecer gente pra fazer biquinho e dizer que vc é invejoso e não-sei-o-quê mais.
É a primeira vez que posto aqui, só que como já havia outro anônimo antes...
E sobre mostrar e contar, pode até funcionar mostrar, dependendo do foco e tudo, contar é mais recomendado pq a estória caminha na cabeça do leitor, não é como se vc estivesse empurrando algo pra ele.
É isso aí
Sei...vc deveria ter cuidado com suas palavras e pensar antes de fazer julgamentos apressados sobre alguém que vc não conhece (ou conhece?), sobre um espaço onde vc entra pela primeira vez.
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