12.11.06

A Caneta



Tinha acabado de receber a encomenda. Vinha de outro estado, de São Paulo. Uma caixa com as coisas de sua avó paterna. Não a tinha conhecido. A avó e seu pai haviam sido separados quando ele era uma criança. Então, não sabia quem tinha sido aquela avó. Há algumas semanas, recebera uma ligação, que na verdade era para seu pai. A partir de então, soube que tinha outra família, que vivia no interior de São Paulo e queria comunicar o falecimento de dona Olga. Foi uma tia quem ligou, comunicando, também, que enviaria alguns pertences, que dona Olga queria que fossem entregues ao filho perdido.
Achou aquilo tudo muito estranho. Uma avó que surgia do nada, de quem seu pai nunca havia falado. Enfim, já que seu pai tinha falecido, sua mãe, desde a separação, não se envolvia nos negócios dele e por ser filha única, ela assumiu a responsabilidade de receber a encomenda. Não pensou mais no assunto, mas, naquele instante, quando recebeu o pacote, pensou: o que será que tem dento?!
Deixou a caixa sobre a mesa. Tentou não dar muita importância, afinal o que poderia ter ali dentro? Velhos pertences de um velho fantasma. Sim, aquela avó era um fantasma. Era provável que fosse um fantasma até para seu pai, se este ainda fosse vivo. Por que ele nunca falou nada? Nunca comentou que tinha mãe? E se ele nem soubesse? Se tivesse sido abandonado? Não, isso não podia ser, ele tinha pai, ela viu as fotos do avô. Fazia todas essas especulações enquanto lavava a louça e percebeu que não sabia nada da vida de seu pai. Sentiu um respingo frio na perna, a pia entupira e transbordara, molhando o chão. "Merda de pacote!", pensou.

Passou a tarde na cozinha, limpando, lavando, arrumando, cozinhando, então, quando anoiteceu, e não havia mais nada o que fazer lá, foi até a sala. O pacote sobre a mesa parecia esperar por ela. Pensou: "não seja idiota, abra logo!". E pegou o pacote rasgando todo o papel, como se tivesse medo que ele escapasse de suas mãos. Arrancou o papel que cobria a caixa, quase com raiva e, por fim, abriu-a.

Uma caneta, apenas uma caneta. "Que porra de brincadeira é essa?" Olhou atentamente. Era uma caneta de metal, preta, pesada, lisa, velha, gorda, bonita, boa de pegar. Observou-a. Era tão lustrada, que podia ver seu reflexo. Dentro da caixa, só a caneta, nenhum papel. “Eu, hein! Velha louca! Nunca deu as caras e manda um presente póstumo ao meu pai: uma caneta velha!” De repente, a caneta desencaixou e de dentro dela caiu um papel amarelo. "Ai, meu Deus, o que será agora?"
Tinha uma inscrição:
"Meu filho, não te conheço, nunca vi teu rosto. Você era muito pequeno quando foi levado de mim. Hoje é teu aniversário e eu te comprei essa caneta. Ela ficará guardada, como todos os outros presentes que te comprei nesta data: brinquedos, roupas, camisa de time de futebol. Mas esse é um presente especial, pois, na idade que você tem hoje, é provável que já tenha se formado, que seja um advogado, um médico ou um professor. Feliz aniversário, filho! Te amo muito!”

Leu o pequeno bilhete com dificuldade. As letras eram pequenas e quase apagadas pelo tempo. Deveria ter, mais ou menos, uns 30 anos. Ficou olhando para ele, revirando, vendo se tinha alguma outra informação. Nada, não tinha nada. Ficou imóvel, calada, sem saber o que fazer. O que significava tudo aquilo? Por que seu pai e sua avó tinham sido separados, quando ele era tão pequeno? Ele não tinha ninguém, a não ser uma meia dúzia de amigos tão bêbados quanto ele. Diferente do que imaginou a avó, ele não se formou em nada, mal terminou o secundário, empregou-se numa repartição pública, na base da “peixada”, e foi tocando a vida. Conheceu sua mãe na repartição, casaram-se, tiveram uma filha e sete anos depois se separaram. Durante os sete anos de casamento, foram parar na delegacia mais de dez vezes, por conta das brigas entre eles. Após a separação, viram-se muito pouco, somente no fórum para acertar a pensão – que ele nunca pagou direito – e nos aniversários da filha. Foi consumido por uma cirrose, que o matou aos 55 anos. Mesmo assim, não tinha mágoa do pai.
Ele era divertido. Tinha paciência com ela, nunca lhe bateu, sempre ia às festas de aniversário. É claro que, na maioria das vezes, já tinha entornado umas pelo caminho, ou chegava no fim da festa.
Sorriu pensando nele. Nos últimos meses, não tinha sorrido muito. Tudo estava muito difícil e ela sentia-se sem eira nem beira, como um “João bobo” balançando sem direção. Por mais que não soubesse nada do passado de seu pai, ela o sentia mais próximo que sua mãe. Era como se tivesse perdido o melhor amigo. Percebeu que chorava. Nunca tinha chorado por ele, nem quando estava sozinha. Ficou imaginando: e se ele tivesse sido como a avó pensou? Será que sua vida seria diferente? Provavelmente, quem abriria esse pacote seria ele mesmo.
Mas e se ele não fosse o filho perdido de Olga? Como a família dela o tinha encontrado? Pelo bilhete, Olga não conhecia o filho e não possuía informações sobre ele. Por que, somente agora, depois da morte dos dois, ocorreu essa espécie de reencontro? E se tudo isso fosse um engano? Subitamente, teve medo de que alguém ligasse dizendo que tudo não passou de um equivoco. Então, quem seria seu pai? Novamente, cairia no abismo de um passado vazio. Ouviu um barulho. Era a mãe, rodando a chave na porta. Limpou a mesa, jogando os restos do pacote fora e guardando a caneta, com o bilhete, no bolso.
”Olá! Ai, meu dia foi um inferno! Fica cada vez mais difícil voltar pra casa. Ah, e a encomenda?! Chegou? O que era?”
”Só uma caneta, mãe, mais nada”. Caminhou para a cozinha e, antes que a mãe pudesse dar continuidade ao assunto, gritou: “Fiz panqueca e está quente, vamos jantar!”


Sim, elas ainda conversariam sobre o insólito presente durante o jantar, mas sua mãe logo esqueceria aquele episódio, como esquece tudo o que vê indo ao trabalho ou voltando para casa – os detalhes do cotidiano. Aquela história faria parte da rotina, que se apaga de minuto a minuto. Mas ela jamais esqueceria, guardaria aquela caneta e não contaria sobre o bilhete. Agora, conhecia uma parte da trajetória de seu pai, ironicamente uma parte que nem ele conheceu. Talvez esse passado, tornasse o presente menos áspero e apaziguasse a falta e a saudade que lhe era tão difícil deixar fluir. Aceitou a caneta como uma verdade. Sim, era melhor essa verdade que nenhuma outra, que o silêncio de um passado sem identidade, sem história.



Viviane Magalhães
Niterói, fevereiro/2006

9 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, adorei Vivi!

beijos

Anônimo disse...

Gostei... seus contos sempre são bons... vc escreveu esse em fevereiro?

Viviane disse...

Oi João! Sim escrevi em fevereiro. Foi meu primeiro conto. Mas fiz algumas modificações.
Um amigo meu que também escreve disse que ele estava muito duro, seco. Então li várias vezes e ajustei o final.
Que bom que gostou. Obrigada.
bjs.

Viviane disse...

Olá Naldo! Seja bem vindo. Que bom que gostou. Leia os outros também.

Grande abraço e obrigada.

Anônimo disse...

Simples e lindo de doer. Parabéns!!

Viviane disse...

Valeu Eduardo. Esse foi o primeiro conto que escrevi.
Obrigada e apareça sempre.
Grande abraço.

Anônimo disse...

Oie!
Ótimo!
Parabéns!
Adorei lê-lo!
Beijos

Anônimo disse...

Olá Viviane, mais uma vez seu texto prendeu minha atenção!!! Muito bom! Beijos.

Anônimo disse...

Legal esse texto. Tu escreves tri bem, guria.
Há braços!!